segunda-feira, 21 de março de 2011

Os mitos dos Acidentes de Trânsito

Eis um artigo assinado pelo colega Perito Criminal do Rio Grande do Sul, Rodrigo Kleinubing, originalmente publicado nesse site. Dada a qualidade e os valiosos esclarecimentos, julguei que valeria a republicação (com a devida autorização do autor).


Os mitos dos Acidentes de Trânsito


De elevada complexidade e decorrentes da interação entre os fatores causais humano, veicular e viário-ambiental, o que incorpora um grande número de variáveis e permite inúmeras combinações no estudo das suas causas, os acidentes de trânsito são ainda cercados de diversos mitos. Vejamos a seguir, 20 dos mais conhecidos:



1. “99% dos acidentes de trânsito são causados pelos motoristas.”


Ainda que o fator humano seja preponderante como causa dos acidentes de trânsito, o fator causal veicular e o fator causal viário-ambiental são negligenciados nas estatísticas elaboradas a partir de informes policiais. Estes fatores quando considerados como causas associadas a outras, a partir de uma visão de analise sistêmica, aumentam muito sua participação, o que só aparece em estudos científicos. É consenso mundial de que o fator humano, associado a outras causas, corresponde a aproximadamente 90%. No entanto, afirmar que 99% dos acidentes são causados unicamente pelos condutores é lavar as mãos e jogar toda a responsabilidade para os condutores.



2. “Em um acidente de trânsito seguido de incêndio, resulta a explosão do tanque.”


Quando do incêndio em veículo, é improvável que ocorra a explosão do tanque de combustível, apesar do mesmo conter vapores potencialmente explosivos. No interior do tanque, a mistura entre combustível e ar atmosférico se encontra saturada, ou seja, acima do limite superior de inflamabilidade. Além disso, os tanques de combustível são providos de dispositivo de alívio de pressão, o que permite a fuga de combustível e o conseqüente efeito lança-chamas, sendo improvável que o fogo penetre para o interior do tanque e ocasione uma combustão súbita da massa de combustível. Atualmente, utilizam-se materiais construtivos de baixo ponto de fusão, como o alumínio e matérias plásticos, os quais sofrem derretimento quando submetidos à ação do calor. Por certo, a explosão de veículos incendiados encontra-se impregnada no imaginário das pessoas, incentivado pela indústria cinematográfica.



3. “O tempo de reação dos motoristas é de 0,75 (3/4) segundos.”


Os mais recentes estudos sobre tempos de reação de condutores nos dão conta de que ninguém reage a uma situação inesperada em menos de 1,8 segundos durante o dia e em menos de 2,5 segundos durante a noite (tempos mínimos de reação), o que explica a inevitabilidade de muitos dos acidentes de trânsito. Este tempo de reação, conhecido como tempo de P.I.E.V. (Percepção, Identificação, Emoção e Vontade) pode chegar a até 5,1 segundos, dependendo de diversos fatores tais como cansaço, enfermidades, idade, álcool e outras drogas, entre outros. O tempo de reação de 0,75 segundos só corresponde à realidade em uma situação esperada e em condições externas favoráveis, como por exemplo, a espera pela mudança de cor de um semáforo.



4. “O travamento do ponteiro do velocímetro revela a velocidade em que o veículo trafegava no momento do impacto.”


O travamento do ponteiro do velocímetro não se constitui em um indicativo confiável da velocidade de impacto de um veículo envolvido em acidente de trânsito , dadas as diversas desacelerações a que o mecanismo de medição da velocidade é submetido em uma colisão.



5. “O acidente de trânsito foi causado pelo estouro de um pneu.”


Os pneumáticos utilizados atualmente na indústria automobilística são de construção radial e os mesmos não estouram quando rompidos, esvaziando lentamente, diferentemente dos pneumáticos antigamente utilizados, de construção diagonal.



6. “Quando do rodízio ou substituição dos pneus, deve-se colocar os pneus menos gastos na dianteira e os mais gastos na traseira.”


O eixo traseiro constitui-se no “leme do veículo”. Em uma situação de tráfego em traçado curvo e com pista molhada, por exemplo, o acionamento do sistema de freio associado ao desgaste da banda de rodagem dos pneumáticos traseiros, resulta na derrapagem do eixo traseiro e na conseqüente perda da estabilidade direcional, situação de mais difícil correção, a qual muitas vezes é confundida com o fenômeno da aquaplanagem .



7. “Os pneus gastos são mais eficientes.”


Ainda que teoricamente um pneumático “liso”, ou seja, com elevado desgaste da banda de rodagem, tenha maior área de contato e, portanto, maior eficiência de frenagem em pista seca (vide pneus slick na fórmula 1), com péssimo desempenho em pista molhada, pneus com prazo de validade vencido tem pior desempenho pela degradação e conseqüente perda das propriedades mecânicas da borracha, resultando em menor eficiência de frenagem



8. "A saída da pista de um veículo significa que o motorista dormiu ao volante.”


A saída de inopino de um veículo de uma pista, tanto de traçado curvo, quanto de traçado retilíneo, pode ocorrer por diversas causas, inclusive pelo condutor ter dormido ao volante. Muitos dos acidentes de trânsito contabilizados em estatísticas oficiais como “dormir ao volante”, tem na verdade outras causas.



9. “O cinto de segurança só é importante na estrada, e inconveniente em algumas situações.”


O cinto de segurança apresenta sua máxima eficiência enquanto dispositivo de segurança passiva em velocidades de até 60 km/h. Daí a importância da sua utilização em perímetros urbanos. Além disso, os mecanismos de lesões mais freqüentes em acidentes de trânsito (projeção, ejeção, intrusão e asfixia) são todos atenuados pela utilização deste que é o mais simples e efetivo dispositivo de segurança veicular. Se como conseqüência de um acidente de trânsito ocorrer imersão em água ou se for deflagrado um incêndio, as chances dos ocupantes estarem lúcidos e se evadirem do veículo são bem maiores para aqueles que utilizam o cinto de segurança. Portanto, o cinto de segurança deve ser utilizado sempre e por todos os ocupantes



10. “Se melhorar as condições de tráfego vão ocorrer mais acidentes.”


De fato, as estatísticas internacionais nos têm revelado um menor número de mortes por acidentes de trânsito em adversas condições ambientais, o que pode parecer contraditório, tendo em vista as piores condições de aderência e de visibilidade ambiental, mas que acabam por diminuir o ímpeto dos condutores e a ocupação das vias. Da mesma forma, a melhoria física da infra-estrutura viária resulta na diminuição do número de vítimas/unidades de tráfego, diferente da influência sobre o número absoluto de vítimas que pode ser aumentado pelo incremento de tráfego originado a partir destas melhorias.



11. “Os carros antigos eram mais fortes e seguros que os modernos.”


Os carros mais antigos eram, na verdade, mais rígidos e conseqüentemente tinham mais dificuldade para se deformar no caso de uma colisão. Os carros mais modernos, por sua vez, são feitos para deformar, absorvem energia cinética, amenizando assim a sua transferência para os ocupantes e aumentando as chances de sobrevivência. Do ponto de vista da segurança veicular, “o carro ideal é aquele que a gente olha feio e ele se deforma.”



12. “Os atropelamentos são sempre causados pelos motoristas.”



Muitos dos atropelamentos ocorrem em uma situação de inevitabilidade para o condutor, pois nesses casos a distância de parada (distância de reação + distância de frenagem) de um veículo para a velocidade em que ele trafega é maior do que a distância em que ele percebe a presença de um pedestre, mesmo estando em velocidade de placa. Os pedestres devem cuidar da sua segurança, pois é muito mais fácil um pedestre parar do que imobilizar um veículo, bem como, na maioria das vezes, um pedestre visualizar um veículo do que o contrário. Convém também lembrar que uma criança de até 12 anos ainda não desenvolveu plenamente as suas capacidades físicas, intelectuais e sociais para se locomover sozinha no trânsito. O pedestre deve assumir sua condição de membro do ambiente viário.



13. “A prioridade da prevenção é reduzir o número de acidentes de trânsito.”


A prioridade das medidas preventivas com relação aos acidentes de trânsito não é a de reduzir o número de acidentes de trânsito e sim de reduzir o número de acidentes de trânsito com vítimas fatais, seguido dos acidentes de trânsito com lesões permanentes, seguido dos acidentes de trânsito com lesões em geral, seguido dos acidentes de trânsito com danos ambientais e seguido dos acidentes de trânsito com danos materiais. De nada adianta se investir em segurança no trânsito e não se reduzir o número de mortes por acidentes de trânsito. Em uma determinada situação, a redução do número de vítimas fatais pode se dar pela melhoria dos procedimentos de primeiros socorros, de resgate e remoção de emergência. Do total dos acidentes de trânsito, aproximadamente 15% resultam em lesões significativas, com aproximadamente 1% resultando em vítimas fatais e 85% apenas em danos materiais.



14. “Os carros saem da fábrica sem defeitos.”


Existe um número significativo de acidentes de trânsito causados por falha de componentes automotivos, não apenas por uso inadequado ou por ausência de manutenção, mas também por problemas de fabricação e que não aparecem nas estatísticas. Daí a importância da certificação de componentes automotivos e a realização dos recalls. Há muito tempo caiu por terra o “mito da infalibilidade das montadoras”.



15. “Os Pardais não funcionam, fazem parte da indústria da multa.”


Concebidos para serem discretos, como ninhos, e daí o apelido de “pardal”, estes dispositivos eletrônicos de controle de velocidade tiveram sua eficácia prejudicada pela exigência legal de serem sinalizados. Neste caso, é fácil quebrar a indústria da multa: é só respeitar o limite máximo de velocidade. Pior que a indústria da multa é a indústria da contra-multa.



16. “Posso beber e dirigir, pois quando bebo dirijo com mais cuidado.”


Ao contrário do que algumas pessoas ainda possam acreditar, apesar de produzir certa excitação inicial, o álcool é um depressor do sistema nervoso central (SNC), com grau de depressão diretamente proporcional a sua concentração no sangue. Uma concentração de 0,5 dg álcool/litro sangue, inferior à concentração tolerável antes da promulgação da denominada “lei seca”, pode dobrar o tempo de reação do condutor.


Considerando-se que o SNC comanda as reações do cérebro, alterando a percepção, a coordenação motora e a capacidade de auto-avaliação, resulta os seguintes aspectos para os condutores: alteração da capacidade de julgamento e aumento da auto-confiança, com elevação da velocidade de condução do veículo; maior tempo de observação para a avaliação de situações de trânsito, inclusive as mais corriqueiras; dificuldade ou até mesmo impossibilidade de sair-se bem de situações inesperadas que dependam de reações rápidas e precisas; tendência de fixação em um ponto único, diminuindo a sua capacidade de desviar a atenção para outro fato relevante; e limitação da percepção a um menor número de fatos num determinado tempo.


Tais aspectos resultam em uma relação direta entre o consumo de bebidas alcoólicas e o risco de provocar ou se envolver em acidentes de trânsito, relação esta evidenciada pelas estatísticas mundiais de acidentes de trânsito, as quais revelam altos índices de envolvimento neste tipo de sinistro por condutores que ingeriram bebida alcoólica, principalmente à noite. Segundo estudo , entre as 3h e 4h da madrugada de um fim de semana, o risco de fatalidade em acidentes de trânsito é 10 vezes maior que durante as 10 e 11h da noite, quando a escuridão é a mesma.


Por último, vítimas de acidentes de trânsito alcoolizadas possuem menos chances de sobrevivência. Sendo o álcool um dilatador dos vasos sangüíneos, os acidentados alcoolizados em choque apresentam maior perda de sangue com maior enfraquecimento do coração que não se contrai com a mesma força, gerando falência no sistema cardiocirculatório. Além disso, em atendimento de emergência existe a dificuldade de se diagnosticar se a pessoa teve uma lesão neurológica ou se está apenas alcoolizada. Também no caso de necessidade de uma cirurgia, existe a questão da anestesia. Portanto, vítimas de acidentes de trânsito alcoolizadas são mais suscetíveis a óbitos.



17. “Se eu estiver de capacete, estou seguro no caso de acidente (cultura do capacete).”


Apesar da importância da utilização do capacete enquanto equipamento de proteção individual para ocupantes de motocicletas, ocorrido um acidente de trânsito com este tipo de veículo, são grandes as chances de gravidade de lesões em outras partes do corpo. A melhor forma de se proteger em uma motocicleta é adotar uma atitude de condução segura, além do “ver e ser visto”, evitando que ocorra o acidente de trânsito.



18. "O Brasil é o campeão mundial dos acidentes de trânsito.”


Nosso país apresenta índices acidentológicos, número de vítimas por população e por frota, muito maiores do que países que adotaram programas de prevenção de acidentes de trânsito, mas menores do que outros países. Acidentes de trânsito não é a maior causa de morte da nossa população, mas a maior causa de morte de jovens, isto num país de grandes índices de criminalidade contra os jovens. Os acidentes de trânsito são a maior causa de perdas de anos de vida laborativa em nosso país, o que representa um enorme impacto na nossa economia.



19. “Só a Educação vai melhorar a situação dos acidentes de trânsito.”


A redução a um número aceitável do número de mortes por acidentes de trânsito em nosso país depende de um programa de prevenção baseado na educação, no esforço legal e na engenharia viária e veicular, e não apenas na educação.



20. “A solução para os acidentes de trânsito é aumentar o rigor das penas”


Aumentar o rigor das penas não resolve o problema da criminalidade e muito menos dos acidentes de trânsito. O mais importante é termos maior qualidade na fase policial e judicial de apuração da responsabilidade dos acidentes de trânsito, visando a diminuição da impunidade com o fortalecimento da prova pericial na instrução processual, evitando o julgamento de um acidente de trânsito apenas por um informe policial ou por prova testemunhal.




Literatura Consultada


G. T. Taoka, Brake Reaction Times of Annalerted Drivers, Int. Traff. Journal (1989).


Robert Dewar, Human factors Affecting Perception, Law and Order Magazine, August (1996).


, W. Toresan Jr., O Registro Permanente do Ponteiro do Velocímetro de Veículos Automotores, Após um Evento de Colisão, Utilizado como Elemento para a Perícia em Acidentes de Trânsito (2006).


O. Negrini N. e R. Kleinübing, “O Mito da Aquaplanagem”, Dinâmica dos Acidentes de Trânsito - Análises, Reconstruções e Prevenção, Ed. Millennium, 3a Edição (2009).


Schwing, R. C. e Kamerud, D. B., The Distribuition of the Risk: Vehicle Occupant Fatalities and Time of the Week, Risk Analysis 8 (1988).

quinta-feira, 10 de março de 2011

Perito Criminal Paranaense Publica Livro Sobre Perícia em Crimes Conta a Pessoa

Eis a capa do livro "Perícias em Locais de Morte Violenta" publicado pelo perito criminal paranaense Edimar Cunico. Segundo o site do autor, a obra é "focada nas necessidades do Perito Criminal que atende aos Locais de Morte Violenta contemplados no capítulo dos Crimes Contra a Vida do Código Penal Brasileiro: Homicídio, induzimento ao suicídio, infanticídio e aborto."

Não conheço o livro, mas fica aqui aberto o espaço para divulgação da publicação de um colega e para comentários sobre a obra. Maiores informações sobre a aquisição desta publicação estão no site do autor (clique aqui para acessá-lo).

segunda-feira, 7 de março de 2011

Em busca do projétil

Alguns pensam que ser perito criminal é estressante. Outros, que para sê-lo há de se ter coragem e "estômago" para suportar as situações e as visões que vivenciamos. Essas pessoas estão deveras corretas. Entretanto, não é por isso que um perito criminal deixa de se divertir com os mais perversos eventos com os quais lida na rotina. Afinal, quem não se diverte com seu trabalho se cansa do que faz brevemente e esse não é o esperado daqueles que trabalham com perseverança em encontrar a verdade. Algumas das situações que acabam por nos divertir envolvem a conduta impensada, inconseqüente e inoportuna de pessoas envolvidas no episódio de interesse criminal. O relato abaixo é um exemplo disso e foi a mim encaminhado por uma perita criminal paulista:

No dia 02 de março eu estava de plantão na equipe do Núcleo de Perícias em Crimes Contra a Pessoa, atendendo às zonas norte e leste da cidade de São Paulo. Por volta das dez horas da manhã chegou um local de tentativa de homicídio por meio de arma de fogo na zona leste.

Seguimos, a fotografa e eu, para nosso local que era localizado em uma das moradias de uma favela. Ao chegarmos ao local, que encontrava-se sem preservação policial, um homem que estava na viela indicada na requisição nos disse que o local era ali mesmo, e que a vítima estava na casa de sua irmã que era próxima e foi chamá-la.

Logo apareceu uma vizinha da vítima com a chave da casa dela, onde havia acontecido o crime, e a abriu para que procedêssemos ao exame pericial. Na moradia havia diversas manchas hematóides e uma munição íntegra calibre 38 no chão. Perguntei a vizinha onde a vítima havia sido atingida e ela respondeu que o tiro havia sido no rosto. Questionei então se o projétil havia transfixado, como ela não entendeu a pergunta eu a repeti nos seguintes termos:

-A bala saiu?
-Ahh saiu sim! – Afirmou ela.

Então a fotografa e eu iniciamos uma busca pelo projétil, neste momento chegou a irmã da vítima e perguntou:

-O que vocês estão procurando?
-A “bala”. – Eu respondi.
-Mas cês não vão achar, porque a bala ta na perna dele.
-Na perna de quem?!? – Perguntei espantada.
-Na perna do filho da mãe que atirou na minha irmã.
-Como assim? – Disse a fotógrafa. Ao que a irmã da vítima respondeu:
-Ué, ela tava deitada na perna dele quando ele atirou.

Após essa frase a fotógrafa e eu caimos na risada, foi impossivel controlar os risos diante de tanta estupidez do indiciado.


quarta-feira, 2 de março de 2011

Sobre a "queda" na taxa de homicídios...

Nas últimas semanas a imprensa tem divulgado que a taxa de homicídios tem caído no estado de SP. Vejo essas divulgações com certa ressalva. Claro que todo plano de gestão em segurança pública deve considerar informações criminais, como resgistros de ocorrência, o que leva a um modelo reativo de policiamento. Esse foi objeto de discussão de Marcos Rolim em seu livro A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e Seguraança Pública no Século XXI.

Em um dos capítulos do referido livro, Rolim expressa brilhantemente as ressalvas a que me referi a pouco. "O primeiro problema no uso desses dados é que eles nunca refletem o volume real ou aproximado dos crimes praticados, mas, na melhor das hipóteses, daqueles que foram reportados à polícia. Por isso, ainda que os registro de ocorrência possam oferecer um instrumento importante de avaliação ou mesmo dados úteis dentro de certos limites, uma política de segurança que se baseia neles será sempre limitada, porque estará estruturada em dados que expressam uma distorção evidente. Nesse sentido, não deixa de ser impressionante que ainda hoje, no Brasil, se procure estabelecer iniciativas na área de segurança a partir do exame desse tipo de material e que os órgãos de imprensa sigam realizando coberturras e reproduzindo 'conclusões' a respeito do aumento ou da diminuição da criminalidade com base em boletins de ocorrência."

Outra observação pertinente é que nem sempre uma diminuição nos registros de criminalidade equivale a uma redução da criminalidade. Marcos Rolim aponta que "Uma diminuição do trabalho policial, uma maior desatenção daqueles encarregados dos registros, denúncias de corrupção, violência policial, etc. implicarão uma queda no número de ocorrências. No entanto, essa queda não terá ocorrido na vida real". Evidentemente, o contrário também é válido, isto é, o aumento do número de registros policiais não necessariamente reflete em deficiência na política de segurança pública. Nas palavras de Rolin, "Dados criminais registrados pela polícia podem aumentar significativamente, por exemplo, caso o trabalho policial se faça mais presente junto às comunidades, ou caso a polícia inaugure novos serviços. Assim, uma estratégia de policiamento comunitário que reforce os vínculos de confiança entre os cidadãos e a polícia permitirá que uma parte importante das subnotificações criminais torne-se conhecida a partir de novos registros". Como se vê, nessa hipótese a ascenção dos fatos criminosos reportaados não está relacionado ao aumento da criminalidade, mas sim em decorrencia de uma melhoria nos serviços policiais.

Não se pode ignorar o fato de que, no Brasil, boa parte da notícia do crime (nottitia criminis) advém do reportar das próprias vítimas ou de seus familiares. Isso quer dizer que os registros muitas vezes estão condicionados à vontade da vítima em reportar, ao comportamento vitimológico. Assim, fatores externos à segurança pública podem influenciar na mudança do comportamento da população de vítimas, de maneira a incentivar ou inibir o noticiamento criminal. "Determinadas condutas antes toleradas ou sequer percebidas como criminosas passam a ser comunicadas à polícia. Ou, ao contrário, fatos anteriormente registrados deixam de sê-lo, dependendo da atenção e do destaque conferidos pela mídia a eles, por exemplo", relata Rolim. O comportamento da polícia também pode ser determinante, quando, a exemplo, casos de homicídio passam a ser registrados com morte a esclarecer, reduzindo, assim, a taxa de homicídios.

A heterogeneidade geográfica também concorre paraa a interpretação desses dados. Em SP, as regiões possuem demandas específicas, com necessidades diferentes e localizadas. Considerando os números que apresentei aqui no CCC sobre o "Relatório de Análise Retrospectiva de Casos Atendidos", cá na área atendida pela EPC Americana, a taxa de homicídio é bem superior a reportada para o estado de SP. Observando os números, temos uma taxa de homicídios próxima de 47 por 100mil habitantes; bem maior que os 14,9 reportados para o estado.

Enfim, dados estatísticos muitas vezes mostram conclusões que não aplicam à realidade. Nas palavras de Rolin, "Quando examinamos dados estatísticos devemos ser, sempre, muito cautelosos (...) porque iremos nos deparar muito frequentemente com somas que expressam apenas aquilo que alguém desejou expressar, e nada mais".



PS- Recomendo o livro. É muito interessante para aqueles que apreciam uma boa leitura sobre Segurança Pública.
PSS- Antes que alguém pergunte: Não, não ganho nada pela divulgação do livro; sequer conheço Marcos Rolim. Mas não é por isso o livro deixa de ser bom.