segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Excelências, autoridades, senhores que, dos palácios, decidem nossos destinos:

Venho apresentar-lhes uma classe oculta. Ocultação, aliás, um tanto irônica, pois somos os que veem. Somos, caríssimos senhores, os olhos da Justiça, da Justiça tão necessária neste nosso sofrido País.
Ninguém nos conhece, ninguém nos vê; e nós seguimos em frente, vendo os males, vendo as dores, vendo as mortes, os furtos e roubos, os acidentes, os sofrimentos somados e empilhados de nosso povo, em sua maioria tão honesto e tão bom.

Somos, senhores, os peritos.
Ninguém nos conhece. Quando chegamos ao local de um furto, as vítimas pensam que somos os investigadores. Compreensível, pois eles raramente vão aos locais de furto. Que aliás raramente são investigados, mas aí já é outra história.
Quando chegamos a um local de homicídio, os bravos soldados da PM já o isolaram do público, e não somos vistos.
Quando chegamos a um local de acidente, a mesma coisa. Com o problema adicional do nosso suposto atraso: todos estão ali esperando há horas para que a perícia libere o local, e onde estava a perícia?
Explicarei aos senhores onde estava a perícia: a perícia estava periciando. A perícia, esquecida de todos, estava se deslocando por áreas cada vez maiores – afinal, com cada vez menos peritos, as áreas de atendimento de cada perito só podem aumentar! –, tentando atender decentemente a uma demanda que a situação do país só faz aumentar. Tentando, senhores, registrar cada ponto crucial de cada uma das desgraças, de cada uma das tragédias em que nossa presença é requisitada.

Os plantões, que há alguns anos atrás eram cansativos, tornaram-se impossíveis. Áreas muito maiores, número cada vez menor de peritos, uma criminalidade cada vez mais violenta, o flagelo das drogas que assola toda a sociedade, espalhando-se como os braços esqueléticos de uma Morte de folhetim, e a quem cabe tudo ver, tudo acompanhar, tudo registrar? Ao perito.

Quando o crime ocorre, chama-se a PM. Quando os vizinhos brigam, chama-se a PM. Quando o acidente ocorre, chama-se a PM. 190 é o número, todos o conhecem.

O que faz, contudo, a PM? Vale lembrar para que nossas autoridades possam tomar suas decisões – que, sabemos, buscam o justo – com conhecimento de causa. A PM, senhores, preserva o local e comunica à Polícia Civil. A PM preserva o local, contudo, não movida por uma estranha vontade de vê-lo assim, paralisado no tempo. Não por acha-lo bonito. Ela o preserva para nós: para aquele caco de perito que irá se arrastar de fora de uma viatura, tendo atendido antes daquele outas dezenas de locais, responsável solitário que ele é por uma área de milhares de km², com dezenas de municípios. 

À Polícia Civil compete ouvir as partes envolvidas, instaurar – se for o caso – um Inquérito Policial, em que se procurará a verdade dos fatos: houve crime? Há quem pareça o ter cometido?

E quem vai examinar o local do crime? Quem vai testar cada instrumento empregado – ou não – nele? Quem vai procurar resíduos, indícios e vestígios nos cadáveres, impressões digitais no local e nas peças? 
Quem vai discernir como aquilo aconteceu, para que a Polícia Civil possa dedicar-se a descobrir os porquês e comos que levarão um dia, se tudo der certo, à justa punição de um criminoso?

Um perito.
Um perito solitário, acompanhado, na melhor das hipóteses, de seu escudeiro o fotógrafo, que hoje em dia também cumpre, no mais das vezes, as funções de agente (motorista e guarda-costas).
E ninguém o vê, ninguém o conhece.

Somos poucos, pouquíssimos!, cada vez menos. E a criminalidade aumenta cada vez mais. E as áreas que cada um cobre no plantão aumentam cada vez mais. E agora ouvimos dizer que todo mundo vai ter um justo aumento de salário. Menos nós. É isso mesmo? Não temos certeza, porque estávamos ocupados demais trabalhando. Estávamos examinando os corpos das vítimas, as janelas quebradas, os carros batidos, os rastros, traços, tacógrafos, facas, pistolas, drogas, porretes. Estávamos examinando, senhores, o Mal. As marcas da maldade humana. Percorríamos, maleta na mão, o bosque onde Seu Lobo fez das suas. Não deu tempo de acompanhar a política ou de fazer passeatas.

Mas levantamos por um instante a cabeça do nosso trabalho, que não cessa, e pedimos, respeitosamente, que não se esqueçam de nós. Somos invisíveis, mas somos os olhos da Justiça. Sem nós, não há Justiça possível.

Não pedimos privilégios, apenas a isonomia já existente que – dizem – está para ser jogada fora.
E esperamos, sinceramente, que os senhores jamais precisem dos nossos serviços; afinal, somos aqueles que registram o Mal, para que o Bem prevaleça.

Agradecendo antecipadamente a atenção,

Um Perito Cansado