terça-feira, 29 de setembro de 2009

Sinal de TV a cabo não é energia... só para o Poder Judiciário

Já há algum tempo, me deparei com alguns colegas discutindo um caso de furto de sinal de TV a cabo. De início fiquei confuso com a temática, já que esses casos costumam ser relativamente simples de serem feitos: constata-se a ligação e a investigação que defina, juntamente com a empresa responsável pelo sinal, se aquela ligação deveria ou não esta ali. Mas meus colegas se engalfinhavam com a tipificação penal do fato... se era furto (art. 155 do CP - "subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel"), estelionato (art. 171 do CP - "obter para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.") ou se era um conduta atípica (ou seja, uma ação que não configura crime).

Talvez seja eu sendo inoportuno, mas penso que há peritos que adentram mais do que deveriam nos meandros jurisprudenciais que guardam relação com os fatos de interesse criminal que atendem. De fato, há disposições jurídicas que colocam a conduta de desvio de sinal de TV a cabo como furto na modalidade prevista no parágrafo terceiro ("art. 155, §3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico."), mas também há disposições dizendo que se trata de conduta atípica (o que, basicamente, é admitir que sinal de TV a cabo não é energia - vide este acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais).

Pericialmente, pouco importa qual a interpretação que os juristas darão às informações do laudo pericial no que se refere a tipificação. Fato é que ao colocar um voltímetro entre os terminais de um cabo coaxial oriunda da empresa de TV a cabo haverá diferença de potencial. Logo, pelo cabo passa energia! Ponto! O laudo não é o documento que tipifica o crime. Nem é o perito que deve faze-lo. Portanto, quando aparecerem quesitos no sentido de determinar se o sinal de TV a cabo constitui ou não energia, devemos responder que sim e não nos atermos às repercussões jurídicas desta resposta.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Ordem espontânea no trânsito, ou: a Europa imita o Brasil

E quem disse que as ciências humanas não contribuem com o meio pericial? Segue um post do colega filósofo e colaborador Ortegão.

Aviso: todos os artigos lincados neste texto são em inglês.

Baseando-se no trabalho do falecido urbanista Hans Monderman, algumas cidades na Europa estão fazendo, com bons resultados (PDF), uma experiência que pode parecer um contra-senso: eliminando toda a sinalização de trânsito. Placas, faixas, sinalização semafórica, vai tudo embora. O resultado, até agora, tem sido positivo: à diminuição do número de acidentes soma-se uma sensível melhora do fluxo de veículos, e cada vez mais cidades na Holanda e na Alemanha aderem ao experimento.

A explicação psicológica, sociológica, econômica ou filosófica para este resultado é bastante simples, e faz sentido. Basicamente, a ordem pode ser coercitiva ou espontânea. A ordem coercitiva, ou exógena, é a que vem de fora; é a lei com seus corolários, a placa PARE, o guarda com apito ou o radar. A ordem espontânea, ou endógena, é aquela que vem de cada um procurar evitar problemas para si, evitando assim também problemas para os outros. No caso do trânsito, com cada motorista ativamente preocupado em evitar um acidente é de se presumir que haja menos acidentes que em uma situação em que os motoristas estejam preocupados apenas com a obediência à sinalização.

Cabe lembrar que estas experiências têm sido feitas na Europa do norte, região em que a obediência à lei – inclusive no trânsito – é sem par. Trata-se de lugares em que as pessoas não atravessam a rua com o sinal fechado para pedestres nem quando são duas horas da manhã e é possível enxergar mais de um quilômetro em cada direção e não há nenhum carro na rua. Numa tal cultura, a confiança na sinalização é certamente muito maior que em nossas plagas, onde encontramos as contraditórias placas “respeite a sinalização”. Ora, quem respeita não precisa da placa; quem não respeita não vai passar a respeitar por causa da placa...

Em nosso país a sinalização – ou mesmo a legislação de trânsito como um todo – não é respeitada como na Europa do norte. Muito pelo contrário, aliás, suas indicações e regulamentações normalmente só entram em cena ex post facto. É comum em locais de colisão e abalroamento que ambos os motoristas se considerem completamente certos, sem que passe pela cabeça deles que há regras de preferência, sem que nenhum deles tenha reparado na sinalização, etc.

Temos, assim, uma situação em alguns aspectos parecida com a das cidades européias que resolveram abolir a sinalização. Temos placas, mas é como se não as tivéssemos. A legislação só entra em cena depois do acidente, para ver quem estava certo ou errado. Para os motoristas, é quase como se jogássemos uma moedinha para cima para decidir: se eles estavam com a razão segundo a lei, a polícia é justa; se é o outro que estava, “a polícia está do lado dele”.

Pode-se presumir que os motoristas alemães ou holandeses saibam perfeitamente definir as regras de preferência, dada a cultura local de respeito à norma e o hábito de transitar por lugares onde ainda há sinalização. Nas cidades em que a sinalização foi abolida, o substrato cultural sobre o qual se estabelece a ordem espontânea é forçosamente muito mais assemelhado à ordem coercitiva determinada pela legislação de trânsito que o que encontramos na nossa sociedade.

Um paralelo poderia ser traçado, talvez, entre o trânsito brasileiro e o de outras sociedades em que tampouco é introjetado ao ponto da Europa do norte o respeito à ordem exógena. Foi publicado há algum tempo um interessante depoimento de um americano radicado na Coréia sobre sua experiência no trânsito no Vietnã. Segundo ele, simplesmente não há sinalização nas ruas e o tráfego flui admiravelmente. Para um americano, que absorveu “as regras e sinais de trânsito junto com o leite da mamãe” (sic), foi uma experiência apavorante, mas de certo modo libertadora, perceber que é possível a existência de uma ordem autônoma. O autor, em seu entusiasmo, chega a citar um sábio chinês, Chuang Tzu (369 a.C.–286 a.C.), que teria dito que “uma boa ordem é o resultado espontâneo de quando se deixam as coisas quietas”.

Creio poder dizer que já vi coisa parecida no Brasil; uma amiga americana queria chegar no Brasil e alugar um carro ainda no aeroporto, para viajar para outra cidade. Convenci-a a não o fazer sem ter visto o trânsito em primeira mão. No seu segundo dia, quando entramos – comigo no volante – em uma rua de mão dupla onde só cabia um carro de cada vez e encetamos o ritual de cortejo típico do trânsito brasileiro, em que cada um procura perceber as intenções do outro motorista para saber se é ou não possível seguir, ela confessou-se incapaz de dirigir no Brasil.

Temos assim, no trânsito como na legislação penal, uma codificação ou tipificação do comportamento que não corresponde às regras socialmente aceitas (mostra-me um brasileiro que nunca descumpriu uma leizinha que seja... e mostrar-te-ei um mentiroso!). A ordem espontânea do trânsito, quando interrompida por um acidente (ou um radar...), cede seu lugar à legislação de trânsito. Determinações de via preferencial que têm pouquíssimo valor na vida prática (quem seria louco de entrar sem olhar em um cruzamento à noite só por ter preferência segundo a legislação de trânsito?), placas que são ignoradas ou ganham um na prática segundo sentido, “mais verdadeiro” (60 km/h = “dá para impressionar as menininhas cantando pneu”; 80 km/h = “pisa fundo!”; PARE = “é melhor diminuir a velocidade e olhar de relance para os lados antes de pisar fundo”...), tudo isso subitamente ganha outro sentido e outra dimensão quando o aparato coercitivo do Estado entra em ação, seja por causa de um acidente ou da simples instalação de um radar. O motorista brasileiro sai de um mundo, de um conjunto de regras, de uma ordem endógena autônoma, e penetra em um universo que lhe é estranho, o da ordem exógena e coercitiva. É mais ou menos o mesmo choque cultural da pessoa normal que se vê como vítima em uma delegacia de polícia: o que ela chamava de roubo passa a ser furto, o assalto que sofreu ganha o nome de roubo, o que era para ela estupro passa a ser atentado violento ao pudor, etc. As regras são outras; elas podem condenar as mesmas coisas e ter os mesmos objetivos, mas são outras.

Para que cheguemos a uma perfeita reprodução do modelo de Monderman, no Brasil, falta apenas a retirada física da sinalização e a construção de mais rotatórias. Creio que na verdade pouco mudaria; a ordem que temos de facto já é do tipo espontâneo.

Perito Ortegão

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Ah, sim... o E.T. do Panamá

Nesta última semana, muitos sites da net divulgaram ter encontrado o corpo de um E.T. no Panamá. Até o Fantástico, programa da Rede Globo, apresentou uma reportagem sobre o assunto, no quadro detetive virtual. Segundo um canal de TV do Panamá, a criatura foi encontrada por um grupo de crianças, teria saido de uma caverna e agarrado nas pernas de uma delas. Nesta circunstância, ainda segundo o relato dos juvenis, eles teriam matado a criatura a pauladas e pedradas antes de fotografá-la.

Observem as fotos da criatura tiradas pelas crianças:


Vamos aos fatos:

1) Como já mencionado em muitos sites que noticiaram a tal aparição, a criatura tem todas as características de um mamífero conhecido por bicho-preguiça, provavelmente da espécie Choloepus hoffmanni;

2) Algumas pessoas questionaram o ventre dilatado do animal. É provável que o corpo esteja entrando no segundo período da putrefação, conhecido por período gasoso. Ao morrer, as bactérias que compões o trato digestório dos mamíferos continuam sua atividade, produzindo gases. Como não têm por onde sair, os gases se acumulam no interior do corpo, dilatando o ventre;

3) O primeiro período da putrefação em cadáveres é conhecido por periodo colorimétrico e tem início com a formação de uma mancha esverdeada no abdomen. É a chamada mancha verde abdominal. Ao repara na fotografia superior esquerda, é possível verificar tal mancha, ainda que difusa, no ventre do corpo do animal;

4) Em humanos, a mancha verde abdominal se forma perto da 20h após a morte e o período gasoso se inicia após alguns dias de óbito. Suponhamos que no corpo de uma preguiça (por ter menos massa corpórea e maior concentração de bactérias no trato digestório) esses fenômenos aconteçam em metade do tempo esperado para cadáveres humanos. Isso implica em a vítima (a preguiça, no caso) ter vindo à morte entre 10h e uns 2 dias anteriores as fotos. Daí surgem as hipóteses: a) as crianças mataram o bicho e voltaram mais de 10h depois para fotografá-lo; ou b) as crianças estão mentindo;

5) Se estivessem no Brasil e estivessem falando a verdade, tais crianças teriam cometido crime contra a fauna (previsto em um dos capítulos da Lei de Crimes Ambientais - 9605/98), já que Choloepus hoffmanni é um animal silvestre. Opppss... tecnicamente, crianças não cometem crime, mas sim ato infracional. Portanto, apesar da conduta tipificada como crime, os juvenis teriam cometido um ato infracional;

6) Como sabemos que eles estão mentindo (graças aos nosso conhecimentos sobre fenômenos cadavéricos), eles não cometeram se quer ato infracional, já que falsa comunicação de encontro de criatura extra terrestre (ainda) não é crime no Brasil.

Como vemos, os conhecimentos pertinentes à tanatologia (estudo da morte e suas repercussões) são interessantes não apenas para o levantamento de informações relevantes à investigação criminal. Mas também para desmarcarar criancinhas confusas, que misturarm ficção com realidade.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Homicídio na Yale University: caso Annie Le


Desaparecida desde o dia 8 de setembro, o corpo da estudante Annie Le foi encontrado no último domingo (13 de setembro) entre duas paredes de um porão do laboratório onde trabalhava. Os exames periciais preliminares revelaram que a morte de Le se deu por asfixia por constrição do pescoço na modalidade de estrangulamento (o relatório do legista traz os dizeres "traumatic asphyxia due to neck compression").

O estragulamento, como modalidade de asfixia mecânica, se caracteriza pelo uso de um laço ao redor do pescoço da vítima em que a força que gera a constrição é diversa do peso do corpo da vítima. É, basicamente, o que distingue o enforcamento do estrangulamento: ambos se processam por um laço, mas o enforcamento, ao contrário do estrangulamento, tem por energia constritiva o peso do corpo da própria vítima. Em qualquer dos casos de asfixia por constrição do pescoço, as petéquias já mencionadas neste blog (neste post) são frequentes.

O principal suspeito era um técnico que trabalhava no mesmo laboratório que a vítima, chamado Raymond Clark III. O suspeito apresentava marcas de arranhões nos braços e falhou no teste do polígrafo (o famigerado "detector de mentiras"). Clark alegava que os arranhões foram causados por um gato de estimação. Como averiguar se Ray Clark diz a verdade?

Sim, os policiais confiaram no tal polígrafo. Mas havia outros meios? Penso que sim. Se Clark apresentava ferimentos nos braços e se estes foram produzidos pela ação de defesa da vítima, então Le (a vítima) deve ter arranhado seu agressor ao tentar se livrar do estrangulamento. Seria possível, portanto, remover as sujidades das unhas do cadáver da vítima, extrair DNA destes resíduos e compará-los com o perfil genético do suspeito. Repare que esse procedimento é viável pois, ao arranhá-lo, a vítima remove fragmentos de tecido do agressor que ficam aderidos em baixo de suas unhas. E nestes tecidos há células nucleadas no agressor, permitindo a obtenção de seu material genético. É provável que os peritos de New Haven tenham usado essa abordagem, apesar de não divulgada.



Em tempo: quando mencionei que os órgãos periciais deveriam se aproximar dos meios acadêmicos em posts anteriores, me referi à troca de informações técnico-científicas. E não aos crimes invadirem o espaço acadêmico. Não custa esclarecer.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Degradação de DNA na estimativa de IPM

O terror de um geneticista forense é, ao final do processo de extração de DNA, perceber que a amostra está muito degradada. Essa situação pode inviabilizar alguns procedimentos, dependendo da quantidade de DNA disponível para exame.

Mas a degradação de DNA nem sempre é vilã em meio forense. É possível estimar o tempo desde de a morte (conhecido por intervalo post mortem ou IPM) a partir de uma amostra de tecido com DNA degradado. O médico e pesquisador italiano Nunzio Di Nunno, da Universidade de Bari, publicou um artigo em 2002 sobre o assunto. Usando citometria de fluxo, Di Nunno e colaboradores compararam a taxa de degradação de DNA em três tecidos (fígado, baço e sangue) de 25 cadáveres cujos IPMs e a causa mortis eram conhecidos.

O resultado da pesquisa demonstrou uma correlação positiva entre a concentração de DNA degradado e o número de horas desde a morte, especialmente no tecido hepático. Isso quer dizer que seriam possível estimar o IPM conhecendo a fração de DNA degradado de uma amostra de fígado da vítima.

O artigo está publicado na edição 23 do American Journal of Forensic Medice and Pathology (23: 173-180).

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Óvulos turbinados e embriões de três pais



A imprensa tem noticiado o caso do Dr. Roger Abdelmassih (foto), o mais conhecido especialista em fertilização in vitro do país. O interesse criminal sobre Abdelmassih são não apenas por ter sido denunciado por abuso sexual (para não dizer estupro), mas também pela suspeita de manipulação de óvulos.

Não vou me ater às acusações sobre o Dr. Roger, mas às tais técnicas de manibulação de óvulos supostamente utilizadas em sua clínica. Uma dela é conhecida vulgarmente por "técnica do óvulo turbinado" e consiste na injeção do citoplasma de um óvulo de uma mulher mais no de uma mulher mais velha. Isso aumentaria a taxa de êxito da reprodução assistida em mulheres acima de 35 anos.

A consequência disso? Sob a óptica genética, podemos dizer que o embrião gerado por meio de um óvulo "turbinado" teria boa chance de conter material genético oriundo de três pessoas: do doador do espermatozóide, da doadora do óvulo e da doadora do citoplasma. Isso porque, na célula, o DNA se encontra majoritariamente no núcleo, mas também está presente, em menor quantidade, nas mitocôndrias, uma organela citoplasmática. Ao injetar conteúdo citoplasmático do óvulo da pessoa X no óvulo da pessoa Y, o gameta resultante terá conteúdo nuclear da pessoa Y e conteúdo mitocondrial da pessoa X.

Imaginemos como seria o processo de identificação por DNA mitocondrial (DNAm) de uma pessoa gerada a partir de um óvulo "turbinado"? Quais as implicações que essa situação geraria? Alguns podem argumentar que o DNA nuclear é mais indicado para fins de identificação. Concordo. Mas há situações em que do vestígio biológico só é viável extrair DNAm e, nesses casos, as implicações dos óvulos "turbinados" podem ser catastróficas. Talvez esse seja um dos motivos pelo qual a técnica foi proibida nos Estados Unidos em 2001.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Qualidade pericial

Desde 2006 venho conversando com colegas sobre a qualidade dos laudos periciais em âmbito criminal. Isso, pois, a balança de qualquer labor contrapõe qualidade e quantidade. Muitos Institutos de Criminalística contam com menos funcionários do que deveriam ( aliás, bem menos), o que resulta em uma média de casos/perito/mês muito grande. Já comentei sobre isso quando postei ironicamente acerca da vida social dos peritos (nesse post aqui).

Para se ter uma idéia, é recomendado que exista 1 perito para cada 5000 habitantes. A média nacional é de aproximadamente 1/48000, ou seja, bem longe do recomendado (clique aqui para acessar a fonte destes dados). A unidade da federação que mais se aproxima do recomendado é o Distrito Federal com 1/10000 e ainda assim possui metade do número de peritos recomendado. Já o Ceará conta com uma razão de 1/572000, a pior de todo o Brasil.

E a qualidade? Como fica? Pelo que tenho notado, essa preocupação não é apenas minha. No dia primeiro de setembro passado, o Ministério da Justiça e Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) firmaram parceria, o que pode resultar em normatização e certificação dos procedimentos periciais. Isso seria um grande avanço no sistema criminal brasileiro. Penso, entretanto, que normatizações e certificações serão efetivas apenas se as provas materiais analisadas o Instituto de Criminalística que o produziu for de fato certificado. Em outras palavras, a prova deixaria de ser aceita se o procedimento não fosse normatizado e órgão que a produziu certificado.


A parceria com o Inmetro aumentará a credibilidade dos laudos periciais no Judiciário brasileiro. Segundo o diretor do Instituto Nacional de Criminalística (INC), Paulo Roberto Fagundes, “a certificação dará conforto ao Ministério Público para oferecer denúncia, e ao juiz, para sentenciar”, avalia. “Além de melhor estruturar os laboratórios periciais com procedimentos que permitam dar maior confiabilidade a nossas técnicas, essa aproximação [com o Inmetro] nos permitirá uma melhor rastreabilidade das provas, de forma a mapear todo o processo e detectar os pontos que precisam ser corrigidos”. O que o direito do INC está se referindo é a chamada cadeia de custódia da prova, mais um conceito de qualidade a ser explorado pelos órgãos periciais brasileiros.

Aguardemos. Que essa parceria vingue e possamos colher seus frutos. É uma ótima notícia para o dia de hoje: 7 de setembro, dia da independência.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

De perna para o ar

Quando um cadáver é encontrado, um dos questionamentos que se deve fazer é se aquele indivíduo morreu onde foi encontrado ou se ali foi colocado depois de morto. Apesar de obvia a importância dessa informação, nem sempre ela é prontamente respondida. E uma resposta precisa deve levar em conta conhecimentos pertinentes ao levantamento de local de crime e, por que não, de medicina legal.

Recentemente, durante um plantão, fui acionado à comparecer em um determinado endereço onde haviam encontrado um cadáver. Imediatamente, fui ao local acompanhado do fotógrafo técnico-pericial.

Era uma via pública de um bairro residencial. No pavimento asfáltico, havia um cadáver. Estava lá o corpo estendido no chão, em decúbito ventral, com a camisa ensangüentada e embolada dorsalmente a altura pouco abaixo dos ombros. As costas e o cabelo (porção posterior) apresentavam sujidades com areia. Quanto aos ferimentos, havia alguns pérfuro-incisos (um no dorso e outros no pescoço), além de escoriações nas costas (orientadas longitudinalmente ao corpo). Era um local pobre em vestígios. Uma única e pequena mancha de sangue e nada mais ao redor que fosse digno de nota.

Observando o corpo, algo me chamou a atenção: a perna direita tinha o joelho parcialmente flexionado e estava levantada no ar, sem qualquer apoio. Como o cadáver já estava em rigor mortis, a tal perna ali permanecia, parada, como se não houvesse gravidade. Veja a foto abaixo:

Repare na posição da perna direita. Ao fundo, há de se notar o quanto o ser humano é curioso quando o assunto é um cadáver, reparem quantos pés ali estão.

E então? Aquele indivíduo morrera naquele local? É provável que não. Vejo que o corpo foi transportado para aquele local e foi ali "desovado". Mas como justificar essa afirmação?

Como já vimos em outro post, a rigidez cadavérica, ao se estabelecer, "congela" o corpo na posição em que ele estava. É provável que tal corpo estivesse em decúbito dorsal (ou seja, de barriga para cima) e com a perna direita flexionada em um plano pouco abaixo do corpo quando o rigor se estabeleceu. Ao ser colocado em outra posição, a perna manteve sua posição original. Outra hipótese, bem menos provável, seria "a revogação da lei da gravidade para pernas direitas de cadáveres", como ouvi um colega ironicamente comentar.

Outras características que suportam a hipótese de transporte post mortem é o fato de não haver o sangramento vultoso no local. Ferimentos pérfuso-incisos tendem a ser altamente hemorrágicos. Logo, se estes tivessem sido produzidos no local de encontro do corpo, haveria grande quantidade de sangue pelo pavimento, o que não foi observado.

Mais uma: a areia encontrada nas costas e no cabelo (parte de trás da cabeça), associada a escoriação nas costas e a posição da camiseta (embolada na altura dos ombros), sugerem que alguém arrastou o corpo enquanto este estava em decúbito dorsal e num local cujo solo fosse arenoso. Nas redondezas em que foi encontrado o corpo, não foi encontrado nenhuma porção de solo exposto com característica arenosa.