sábado, 27 de março de 2010

O caso Nardoni e a consagração da perícia brasileira

É, sem dúvida, um caso emblemático. A morte da menina Isabella Nardoni, ocorrida há quase dois anos, mobilizou a nação. A brutalidade com que os fatos teriam ocorrido levou a tal mobilização. A cobertura massante da mídia e a comoção nacional colocaram o caso em seu merecido lugar: o rol de casos criminais históricos da justiça brasileira.

Histórico, mas não apenas no que tange à justiça. Histórico pelo meios de prova preponderantemente considerados. Histórico pela materialidade dos fatos que emergiu do trabalho pericial. No caso Nardoni não houve testemunhas presenciais, portanto as provas materiais assumiram papel chave na apuração do ocorrido. E foi a perícia de ofício, representada no tribunal pelos laudos e personificada na perita criminal Dra. Rosângela Monteiro, que vislumbrou os eventos.

Dra. Rosângela Monteiro, perita criminal assistente da diretoria do núcleo de perícias em crimes contra a pessoa do Instituto de Criminalística (IC) da Superintendência de Polícia Técnico-Científica de São Paulo (Foto: Raul Zito/G1)

Nessa madrugada, o casal Alexandre Nardoni e Anna Jatobá foi considerado culpado pelo júri. Na corte, foi emblemático o litígio entre a força dos indícios (sustentada pela acusação) e a suposta dúvida sobre o conteúdo dos laudos (tese da defesa). O júri votou e o veredito não deixou dúvida acerca da força das provas materiais. O desdobramento do resultado apontado pelos jurados não apenas atendeu ao clamor popular que tomou o país, mas consagrou a perícia brasileira.

Apesar das tentativas de desqualificação dos profissionais da perícia e de seus trabalhos, das opiniões de assistentes técnicos contratados pela defesa (como George Saguinetti e Delma Gana), a condenação mostrou uma mudança cultural em nossos tribunais do júri, ressaltando a importância da perícia em casos criminais. Importância esta que a população se acostumou a ver nos meios hollywoodianos sem se lembrar que a ciência contra o crime deve ser aplicada e valorizada na vida real. Até mesmo neste sentido o caso Nardoni é importante: não me recordo de outra ocasião em que a pericia criminal brasileira tenha sido tão divulgada e discutida quanto na oportunidade em tela.

Já comentei por aqui que um dos objetivos iniciais deste blog era o de divulgar o trabalho pericial para, assim, valorizar os profissionais da perícia. Em assim sendo, o caso aqui discutido atingiu, e com muita propriedade, esse objetivo. Este veículo, portanto, não poderia deixar de ressaltar o caso, seu veredito e suas conseqüências. Há de ser dizer que a perícia brasileira ganhou prestígio e valorização diante deste caso. Os trabalhos realizados e apresentados são motivo de orgulho dos peritos criminais Brasil a fora.

Devemos, portanto, agradecer e parabenizar à Dra. Rosângela Monteiro e aos demais peritos que estiveram envolvidos como o caso. O excelente trabalho destes profissionais enalteceu a classe pericial e consagrou a pericia criminal brasileira!

quinta-feira, 25 de março de 2010

Perícia: objeto de arte

Vagando pela internet, encontrei versos que pautavam sobre o tema "forensic science" em um blog denominado Music Literature Weird Stuff. Vejam tais versos abaixo:

Forensic Science

Note, Sir
the gentle depression on the sofa
where she sat, her arm draped on the backrest
Do photograph the vacuum;
It may tell you something.

The air shimmers -
She was here; I sense the form
and the quiet air still carries
the echoes of her voice;
can it be recorded?

Pick up that strand of black hair carefully,
with tweezers
Decipher the DNA
Reconstruct that beautiful face
that I may once again look and be lost

Ah! a wine glass! Evidence!
Handle it carefully, with a soft cloth;
capture her prints
and model her soft fingers
that I may hold them to my lips again.

Lipstick prints on a tissue!? Wonderful!
Are they identical, Sir,
to those placed on my eyebrows
so long ago? Those
that I failed to collect?

How will you find her?
She, the victim AND the murderer?
Go back in time, snatch her,
before she vanishes
into colourless memories.


Não sei quanto aos nobres colegas e leitores, mas me encheu os olhos ver a atividade pericial poetizada. Ainda não havia pensado na perícia como objeto de arte de qualquer natureza.

domingo, 21 de março de 2010

Coordenadas Geográficas: Transformação de Datum

Todos sabemos que as coordenadas de localização geográfica são valores de latitude (norte/sul) e longitude (leste/oeste) que indicam a posição de um ponto na superfície do Planeta Terra. Ocorre que o plano de projeção das latitudes/longitudes no planeta é regular e assume que o planeta seja um geóide perfeito, mas a superfície do planeta não tem nada de regular, ocorrendo distorções entre a posição real e o geóide perfeito imaginado.

Mas onde que é encaixada a grade de latitude e longitude? Há vários modelos, chamados de datum, sendo os mais comuns o SAD69 (South American Datum 1969, utilizado pelo Ibama, Inpe, etc...), o WGS84 (Utilizado pelo Google Earth) e o SIRGAS (Oficial brasileiro a partir de 2015, bem parecido com o WGS84). O datum seria, então, um conjunto de pontos de amarração da grade de latitudes e longitudes. Para ilustrar, é o equivalente a definir pontos de amarração específicos para colocar um "globo da morte" gigantesco na superfície irregular do planeta numa posição exata. Isso explica porque, muitas vezes, as coordenadas coletadas em campo não se encaixam com as imagens do Google Earth.

As cooordenadas 23°32'54.79"S e 46°39'54.86"O (datum WGS84), por exemplo, referem-se ao centro do gramado do Estádio Pacaembu, em São Paulo-SP. Essas mesmas coordenadas no datum SAD69 localizam-se a cerca de 60 metros de distância, nas cadeiras numeradas. Normalmente essa distância é de algumas dezenas até 200 metros, o que pode ser crucial em levantamentos urbanos e/ou em caminhadas em mata fechada.



O comum de um leigo é só anotar a coordenada, mas um Perito tem que colocar também o datum utilizado pelo GPS na coleta dos dados. Assim não desmoraliza a classe nem sua expertise ao tentar sobrepor dados de um Sistema de Informações Geográficas que "não se encaixam"! :)

A quem interessar, encaminho alguns links úteis para conversão de Coordenadas de vários tipos e de data diferentes:

No site da Cartográfica/UFRGS, vá em Conversor online. Na página Transformação de Coordenadas, no canto superior tem um link "Calculos".

Outras opções são a UERJ e o Centro de Referência em Informações Ambientais (CRIA).

Afinal, não basta um GPS, tem que saber onde está! hehe

quinta-feira, 18 de março de 2010

Arruda e Valorização da Perícia

Divulgando melhor o valor da Perícia Criminal.

No censo comum, quem faz a investigação é o delegado. Sem dúvidas é o cargo investigativo de maior reconhecimento social. Esse reconhecimento se revela no salário, que é sempre igual ou maior que o salário do Perito Criminal.

Ocorre que, do inquérito policial, uma das poucas peças que persistem até o final da persecução penal é o Laudo Pericial. Muitas oitivas dos delegados são repetidas pelo Juiz, mas as provas colhidas em um local de crime pelo Perito Criminal são únicas e o Laudo Pericial é fundamental, não pode ser descartado. Não falo isso como forma de diminuir o tão importante trabalho dos delegados de polícia, mas para ressaltar a importância do Laudo.

Poucas vezes, a mídia reconhece um trabalho pericial bem feito. Recentemente, tive muito orgulho ao ver a notícia de que a convicção de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para negar habeas corpus ao Ex-Governador do DF, Roberto Arruda, teve por base 45 laudos periciais bem feitos.

Entre outras constatações, os Peritos "provaram que, tanto os recibos usados na tentativa de justificar acompra de panetones como a declaração exigida pelo jornalista Edson dos Santos, o Sombra, para mudar seu depoimento, tiveram como origem a mesma impressora, apreendida pela PF no gabinete do governador."

Através do competente trabalho pericial "também possível provar que os quatro recibos apresentados em defesa do governador – que supostamente teriam sido impressos entre 2004 e 2007, destinados à compra de panetones – foram, na verdade, impressos em outubro de 2009. Com a técnica usada pelos peritos, foi inclusive possível precisar a data e o horário da impressão."

Fato interessante é que o Arruda foi preso inicialmente no Instituto Nacional de Criminalística, órgão central da Perícia da Polícia Federal, há poucos metros de onde foram feitos os laudos que o incriminaram.


É muito recompensador ver um corrupto na cadeia por conta de um Laudo nosso.

É muito importante para fortalecer a utilização da "Ciência contra o Crime" que nossos resultados sejam mostrados a população que paga o nosso salário.

Jaula nele!

domingo, 14 de março de 2010

XI Seminário Nacional de Documentoscopia


Nos dias 11 a 14 de maio de 2010, em Cuiabá/MT, serão realizados os eventos simultâneos (XI Seminário Nacional de Documentoscopia e III Seminário Nacional de Perícia Contábil), promovidos pela AssociaçãoBrasileira de Criminalística (ABC).

Aos interessados em apresentação de trabalhos científicos nas áreas respectivas, podem encaminhar o resumo à comissão organizadora até o dia 31 de março de 2010.

Quem tiver seu trabalho aprovado, pode requerer o apoio da ABC para custear as despesas com passagem aérea, hospedagem, além da isenção da taxa de matrícula.

Quem quiser participar dos eventos de alguma forma (palestrante ouparticipante), poderá obter maiores informações nos sites www.abcperitosoficiais.org.br e www.apeco-mt.com.br/evento2010

sexta-feira, 12 de março de 2010

Diga "Não!" ao argumento de autoridade nos meios periciais


Poucos se dão conta disso, mas o argumento de autoridade sem a devida fundamentação não deveria ter espaço no meio forense. Quando pensamos criteriosamente sobre essa afirmação ela parece óbvia. Mas não é.

O fato é que algumas pessoas, depois de terem prestado notória contribuição ao mundo pericial (fundamentada e corretamente interpretada), passam a ser vistas como "os donos da verdade" em suas declarações. Isso deveria ser visto como um ato de pseudo-ciência, mas não é isso que ocorre.

Já vimos isso acontecer em alguns casos midiáticos em que alguns figurões aparecem para "esclarecer" os fatos com suas experiências e pompas profissionais, usando, inclusive, o nome de instituições de pesquisa sérias para dar mais credibilidade ao dito. Um desses figurões foi muito bem caracterizado no blog do Noel.

A ciência tem seus exemplos de grandes nomes que fizeram afirmações sem que os dados desse suporte as suas conclusões. O próprio Galileu Galilei defendeu com unhas e dentes a hipótese heliocêntrica de Copérnico, embora suas observações não corroborassem tal hipótese (leia mais no blog RNAm).

Volto a dizer: parece óbvio, mas não é. Perito criminal deve usar e abusar da ciência. Mas, por favor, esqueçam o argumento de autoridade. Em especial o "mau argumento de autoridade". Esqueçam os argumentos cuja forma lógica é "P disse que Q; logo, Q" ou ainda "Todas as autoridades dizem que P; logo P".

É sabido que parte do conhecimento científico que hoje aceitamos tenha sido atingido com auxílio das opiniões de especialistas. Porém, pericialmente, usemos como suporte não a opinião de especialistas, mas suas contribuições científicas.

domingo, 7 de março de 2010

Sobre vestígios, indícios e evidências

Vestígios, indícios e evidências são palavras que aparecem no jargão criminalístico que, apesar de possuirem suas particularidades, nem sempre são compreendidas. Reproduzo neste post um trecho de um artigo publicado na Revista dos Tribunais que esclarece o assunto:

"Esses termos são freqüentemente utilizados como sinônimos. Porém, num contexto criminalístico, existe uma diferenciação importante em suas semânticas formais. Visando evitar acroases, vale introduzir neste trabalho definições destes termos. Apesar de relacionados, tais conceitos podem gerar equívocos interpretativos caso deixem de ser bem delineados. Enquanto o vestígio abrange, a evidência restringe e o indício circunstancia. Como se nota a seguir.

O Código de Processo Penal brasileiro traz que, na presença de vestígios, o exame de corpo de delito será indispensável sob pena de nulidade. O objetivo primo do exame referido é a comprovação dos elementos objetivos do tipo, essencialmente no que diz respeito ao resultado da conduta delituosa, através de vestígios. Entretanto, não há dispositivo legal que defina precisamente o que vem a ser um vestígio, mesmo porque a lei não é o espaço para fins de definição. Mas é provável que esta ausência de definição jurídica também decorra do fato de a palavra ser empregada num sentido próximo do comum, não necessitando de um critério normativo específico. Etimologicamente, o termo deriva da palavra latina vestigium que, por sua vez, possui significado bastante abrangente: planta ou sola dos pés (das pessoas e dos animais), pegada, pista, rastro; traço, sinal, marca. Em termos periciais, o conceito de vestígio mantém a característica abrangente do vocábulo que lhe deu origem, podendo ser definido como todo e qualquer sinal, marca, objeto, situação fática ou ente concreto sensível, potencialmente relacionado a uma pessoa ou a um evento de relevância penal, e/ou presente em um local de crime, seja este último mediato ou imediato, interno ou externo, direta ou indiretamente relacionado ao fato delituoso.

Ao chamar uma coisa qualquer de vestígio, se está admitindo que sua situação foi originada por um agente ou um evento que a promoveu. Um vestígio, portanto, seria o produto de um agente ou evento provocador. Nesta dinâmica, pressupõe-se que algo provocou uma modificação no estado das coisas de forma a alterar a localização e o posicionamento de um corpo no espaço em relação a uma ou várias referências fora e ao redor do dele. O correto e adequado levantamento de local de crime, por exemplo, revela uma série de vestígios. Estes são submetidos a processos objetivos de triagem e apuração analítica dos quais resultam diversas informações. Uma informação de relevância primordial é aquela que atesta ou não o vínculo de tal vestígio com o delito em questão. Uma vez confirmado objetivamente este liame, o vestígio adquire a denominação de evidência. Nas palavras de Mallmith (2007), "as evidências, por decorrerem dos vestígios, são elementos exclusivamente materiais e, por conseguinte, de natureza puramente objetiva". Portanto, evidência é o vestígio que, após avaliações de cunho objetivo, mostrou vinculação direta e inequívoca com o evento delituoso. Processualmente, a evidência também pode ser denominada prova material.

Assim como ocorre com o vestígio, a origem da palavra indício também vem do latim indicium, cuja semântica é "sinal, indicação, revelação, denúncia, descoberta, acusação, indício, prova". O próprio radical latino index, por si só, tem sentido de "aquilo que indica" (Mazzilli, 2003). Porém, ao contrário do vestígio e da evidência, o indício apresenta uma conceituação legal prevista no Código de Processo Penal brasileiro. Neste sentido, indício seria uma circunstância conhecida, provada e necessariamente relacionada com o fato investigado, e que, como tal, permite a inferência de outra(s) circunstância(s). O termo "circunstância" é aqui utilizado como expressão próxima, semanticamente, de "conjuntura", como a combinação ou concorrência de elementos em situações, acontecimentos ou condições de tempo, lugar ou modo.

Considerando a definição legal, é de se reparar que um indício, sendo uma circunstância, autoriza a conclusão indutiva de outros indícios, também circunstanciais. Nos termos da lei, a circunstância conhecida e provada seria uma premissa menor, ao passo que a razão e a experiência seriam uma premissa maior; da comparação entre as premissas menor e maior emerge a conclusão indutiva de que trata o texto legal (Mirabete, 2003). Via de regra, essa premissa menor vem apresentada de forma objetiva por se tratar de "circunstância conhecida e provada". Cumpre consignar que o indício se reveste de uma situação circunstancial, cuja interpretação pode ser objetiva ou subjetiva, ainda que relativamente. Nesses termos, a premissa menor referida acima coincide com a evidência, por se afastar do caráter subjetivo e, conseqüentemente, por se revestir de objetividade.

A subjetividade potencial do indício é a ele inerente dado o momento pós-pericial de sua gênese. O indício surge num instante processual, quando às evidências foram agregados fatos apurados pela autoridade policial (quando do inquérito) ou ministerial (quando da denúncia). Então, toda informação que tem relação com o relevante penal é um indício, seja ela objetiva ou subjetiva. Entretanto, o indício se aparta das conclusões periciais quando puramente subjetivo. Logo, o indício originário de uma evidência é sempre decorrente de um procedimento pericial e, portanto, objetivo. Na processualística penal, há quem intitule o indício resultante de subjetividade de prova indiciária (Mazzilli, 2003).

Assim sendo, podemos deduzir que a evidência é o vestígio que, mediante pormenorizados exames, análises e interpretações pertinentes, se enquadra inequívoca e objetivamente na circunscrição do fato delituoso. Ao mesmo tempo, infere-se que toda evidência é um indício, porém o contrário nem sempre é verdadeiro, pois o segundo incorpora, além do primeiro, elementos outros de ordem subjetiva."



Literatura Citada

MALLMITH, Décio de Moura. Corpo de delito, vestígio, evidência e indício. 2007.

MAZZILLI, Hugo Nigro. O papel dos indícios nas investigações do Ministério Público. 2003.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2003.