(ou perícia em local de briga de bar)
O autor do blog Chi vó, non pó descreve que possui "uma enorme paixão (não correspondida) pelas ciências". Talvez eu padeça do mesmo mal (ou bem). Me entretenho com observações, me divirto com experimentos, me empolgo com teorias... Não é raro eu afirmar que os Caçadores de Mitos (Mythbusters), apesar dos vícios nos desenhos experimentais, possuem o emprego dos meus sonhos. Os apresentadores do programa propõem experimentos para testar a viabilidade de certos mitos e conhecimentos populares. Até mesmo trechos de filmes têm sua plausibilidade testada.
Mas não é apenas na televisão que se testam as hipóteses de conhecimento popular. Eventualmente, cientistas exploram essas hipóteses e publicam artigos com a temática. O mais recente que tive notícia trata daquelas cenas de filme envolvendo uma briga de bar na qual itens da mobília e garrafas de cerveja voam pelo recinto. Ou que um quebra uma garrafa na cabeça do outro e o entrevero continua como se nada tivesse acontecido.
Stephan Bolliger e colaboradores (2009) publicaram um artigo que visou testar a hipótese de que uma garrafada pode gerar um traumatismo craniano. Eles justificam o trabalho dizendo que “têm sido perguntados em tribunais se atingir a cabeça de um humano com uma garrafa é suficiente para fraturar o crânio e se garrafas cheias ou vazias são mais prováveis em causar tais lesões”. De acordo com a vivência dos autores, “garrafas de meio litro são comumente utilizadas como instrumentos em disputas” (com “disputa” eles quiseram dizer “brigas de bar”). Interessante notar que os autores foram criteriosos a ponto de utilizar garrafas de cerveja cheias e vazias no teste, além de estimar a energia necessária para fraturá-las.
Algumas pessoas podem dizer que o resultado do experimento é óbvio, com um sonoro "é claro que uma garrafa pode fraturar um crânio". Mas, até então, ninguém havia se dado ao trabalho de testá-la. O experimento aqui apresentado é um teste de hipótese como qualquer outro. Seguiu o método científico e foi aceito para publicação. E, apesar de parecer inútil, os conhecimentos dele emergidos podem e devem ser aplicados.
Em um caso envolvendo lesão corporal, a análise das lesões no corpo da vítima sugere características da arma utilizada. Quando se trata de armas de oportunidade (aqueles objetos que o fabricante não imaginou que pudessem servir como arma), nem sempre é fácil determinar qual foi o instrumento utilizado. No caso em tela, se a lesão for contusa, é possível que uma garrafa íntegra tenha sido utilizada. Se a lesão for incisa, uma garrafa quebrada pode ser o instrumento. Já se a lesão for mista (corto-contusa) é possível que a garrafa tenha se quebrado no momento do embate.
Eles estimaram que garrafas cheias se fraturam com uma energia de impacto de 30J, enquanto as vazias demandam 40J. Ë sabido que o crânio humano se fratura com um impacto entre 14,1 e 68,5J, dependendo da região de embate no escalpo (Yoganandan et al 1995). Logo, uma garrafada poderia causar um traumatismo craniano grave, dependendo da região do calvário atingido.
Além disso, com os dados do paper, podemos extrapolar conclusões na localística: se a vítima foi atingida por uma garrafa e não sofreu traumatismo, então a garrafa a ser buscada no local do evento deve estar íntegra, e vice-versa.
Outra questão pertinente diz respeito à capacidade de um suspeito em imprimir certa energia à arma do crime. Suponhamos que uma vítima tenha sofrido fratura de crânio e que no local houvesse uma garrafa quebrada e vazia (aqui denotada pela ausência da tampa). De antemão, sabemos que a energia necessária para tal feito é superior à 40J. Um quesito possível seria se um determinado suspeito (uma mulher franzina, por exemplo) seria capaz de quebrar uma garrafa na cabeça da vítima. Fazendo uma releitura pericial do quesito: se uma mulher franzina seria capaz de imprimir uma aceleração tal na garrafa vazia de forma que a energia de impacto fosse no mínimo de 40J. Tal releitura não seria possível sem os dados do trabalho de Bolliger et al (2009)!
Portanto, o trabalho não é tão inútil assim. Ele agrega conhecimento: possui hipóteses testáveis (e, portanto, falseáveis), emprega um método válido e traz conclusões tangíveis... Aprecio essa ciência popperiana. Indicar esse trabalho para o IgNobel talvez fosse um exagero. Mas quem disse que os artigos indicados para o prêmio não são científicos?
PS- Alguns indivíduos menos favorecidos (para não dizer idiotas) colocaram vídeos no Youtube que comprovam que nem sempre a garrafa de cerveja é mais resistente que alguns cabeças-dura, como no vídeo abaixo:
PSS- Mas de vez em quando acontece:
Artigos citados:
Bolliger et al. 2009. Are full or empty beer bottles sturdier and does their fracture-threshold suffice to break the human skull? Journal of Forensic and Legal Medicine 16: 138-142.
Yoganandan et al. 1995. Biomechanics of skull fracture. Journal of Neurotrauma 12: 659–68.
Link relacionado e recomendado:
RNAm - Garrafas, garrafas... briga de bar também é Ciência!
O autor do blog Chi vó, non pó descreve que possui "uma enorme paixão (não correspondida) pelas ciências". Talvez eu padeça do mesmo mal (ou bem). Me entretenho com observações, me divirto com experimentos, me empolgo com teorias... Não é raro eu afirmar que os Caçadores de Mitos (Mythbusters), apesar dos vícios nos desenhos experimentais, possuem o emprego dos meus sonhos. Os apresentadores do programa propõem experimentos para testar a viabilidade de certos mitos e conhecimentos populares. Até mesmo trechos de filmes têm sua plausibilidade testada.
Mas não é apenas na televisão que se testam as hipóteses de conhecimento popular. Eventualmente, cientistas exploram essas hipóteses e publicam artigos com a temática. O mais recente que tive notícia trata daquelas cenas de filme envolvendo uma briga de bar na qual itens da mobília e garrafas de cerveja voam pelo recinto. Ou que um quebra uma garrafa na cabeça do outro e o entrevero continua como se nada tivesse acontecido.
Stephan Bolliger e colaboradores (2009) publicaram um artigo que visou testar a hipótese de que uma garrafada pode gerar um traumatismo craniano. Eles justificam o trabalho dizendo que “têm sido perguntados em tribunais se atingir a cabeça de um humano com uma garrafa é suficiente para fraturar o crânio e se garrafas cheias ou vazias são mais prováveis em causar tais lesões”. De acordo com a vivência dos autores, “garrafas de meio litro são comumente utilizadas como instrumentos em disputas” (com “disputa” eles quiseram dizer “brigas de bar”). Interessante notar que os autores foram criteriosos a ponto de utilizar garrafas de cerveja cheias e vazias no teste, além de estimar a energia necessária para fraturá-las.
Algumas pessoas podem dizer que o resultado do experimento é óbvio, com um sonoro "é claro que uma garrafa pode fraturar um crânio". Mas, até então, ninguém havia se dado ao trabalho de testá-la. O experimento aqui apresentado é um teste de hipótese como qualquer outro. Seguiu o método científico e foi aceito para publicação. E, apesar de parecer inútil, os conhecimentos dele emergidos podem e devem ser aplicados.
Em um caso envolvendo lesão corporal, a análise das lesões no corpo da vítima sugere características da arma utilizada. Quando se trata de armas de oportunidade (aqueles objetos que o fabricante não imaginou que pudessem servir como arma), nem sempre é fácil determinar qual foi o instrumento utilizado. No caso em tela, se a lesão for contusa, é possível que uma garrafa íntegra tenha sido utilizada. Se a lesão for incisa, uma garrafa quebrada pode ser o instrumento. Já se a lesão for mista (corto-contusa) é possível que a garrafa tenha se quebrado no momento do embate.
Eles estimaram que garrafas cheias se fraturam com uma energia de impacto de 30J, enquanto as vazias demandam 40J. Ë sabido que o crânio humano se fratura com um impacto entre 14,1 e 68,5J, dependendo da região de embate no escalpo (Yoganandan et al 1995). Logo, uma garrafada poderia causar um traumatismo craniano grave, dependendo da região do calvário atingido.
Além disso, com os dados do paper, podemos extrapolar conclusões na localística: se a vítima foi atingida por uma garrafa e não sofreu traumatismo, então a garrafa a ser buscada no local do evento deve estar íntegra, e vice-versa.
Outra questão pertinente diz respeito à capacidade de um suspeito em imprimir certa energia à arma do crime. Suponhamos que uma vítima tenha sofrido fratura de crânio e que no local houvesse uma garrafa quebrada e vazia (aqui denotada pela ausência da tampa). De antemão, sabemos que a energia necessária para tal feito é superior à 40J. Um quesito possível seria se um determinado suspeito (uma mulher franzina, por exemplo) seria capaz de quebrar uma garrafa na cabeça da vítima. Fazendo uma releitura pericial do quesito: se uma mulher franzina seria capaz de imprimir uma aceleração tal na garrafa vazia de forma que a energia de impacto fosse no mínimo de 40J. Tal releitura não seria possível sem os dados do trabalho de Bolliger et al (2009)!
Portanto, o trabalho não é tão inútil assim. Ele agrega conhecimento: possui hipóteses testáveis (e, portanto, falseáveis), emprega um método válido e traz conclusões tangíveis... Aprecio essa ciência popperiana. Indicar esse trabalho para o IgNobel talvez fosse um exagero. Mas quem disse que os artigos indicados para o prêmio não são científicos?
PS- Alguns indivíduos menos favorecidos (para não dizer idiotas) colocaram vídeos no Youtube que comprovam que nem sempre a garrafa de cerveja é mais resistente que alguns cabeças-dura, como no vídeo abaixo:
PSS- Mas de vez em quando acontece:
Artigos citados:
Bolliger et al. 2009. Are full or empty beer bottles sturdier and does their fracture-threshold suffice to break the human skull? Journal of Forensic and Legal Medicine 16: 138-142.
Yoganandan et al. 1995. Biomechanics of skull fracture. Journal of Neurotrauma 12: 659–68.
Link relacionado e recomendado:
RNAm - Garrafas, garrafas... briga de bar também é Ciência!
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