sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Ordem espontânea no trânsito, ou: a Europa imita o Brasil

E quem disse que as ciências humanas não contribuem com o meio pericial? Segue um post do colega filósofo e colaborador Ortegão.

Aviso: todos os artigos lincados neste texto são em inglês.

Baseando-se no trabalho do falecido urbanista Hans Monderman, algumas cidades na Europa estão fazendo, com bons resultados (PDF), uma experiência que pode parecer um contra-senso: eliminando toda a sinalização de trânsito. Placas, faixas, sinalização semafórica, vai tudo embora. O resultado, até agora, tem sido positivo: à diminuição do número de acidentes soma-se uma sensível melhora do fluxo de veículos, e cada vez mais cidades na Holanda e na Alemanha aderem ao experimento.

A explicação psicológica, sociológica, econômica ou filosófica para este resultado é bastante simples, e faz sentido. Basicamente, a ordem pode ser coercitiva ou espontânea. A ordem coercitiva, ou exógena, é a que vem de fora; é a lei com seus corolários, a placa PARE, o guarda com apito ou o radar. A ordem espontânea, ou endógena, é aquela que vem de cada um procurar evitar problemas para si, evitando assim também problemas para os outros. No caso do trânsito, com cada motorista ativamente preocupado em evitar um acidente é de se presumir que haja menos acidentes que em uma situação em que os motoristas estejam preocupados apenas com a obediência à sinalização.

Cabe lembrar que estas experiências têm sido feitas na Europa do norte, região em que a obediência à lei – inclusive no trânsito – é sem par. Trata-se de lugares em que as pessoas não atravessam a rua com o sinal fechado para pedestres nem quando são duas horas da manhã e é possível enxergar mais de um quilômetro em cada direção e não há nenhum carro na rua. Numa tal cultura, a confiança na sinalização é certamente muito maior que em nossas plagas, onde encontramos as contraditórias placas “respeite a sinalização”. Ora, quem respeita não precisa da placa; quem não respeita não vai passar a respeitar por causa da placa...

Em nosso país a sinalização – ou mesmo a legislação de trânsito como um todo – não é respeitada como na Europa do norte. Muito pelo contrário, aliás, suas indicações e regulamentações normalmente só entram em cena ex post facto. É comum em locais de colisão e abalroamento que ambos os motoristas se considerem completamente certos, sem que passe pela cabeça deles que há regras de preferência, sem que nenhum deles tenha reparado na sinalização, etc.

Temos, assim, uma situação em alguns aspectos parecida com a das cidades européias que resolveram abolir a sinalização. Temos placas, mas é como se não as tivéssemos. A legislação só entra em cena depois do acidente, para ver quem estava certo ou errado. Para os motoristas, é quase como se jogássemos uma moedinha para cima para decidir: se eles estavam com a razão segundo a lei, a polícia é justa; se é o outro que estava, “a polícia está do lado dele”.

Pode-se presumir que os motoristas alemães ou holandeses saibam perfeitamente definir as regras de preferência, dada a cultura local de respeito à norma e o hábito de transitar por lugares onde ainda há sinalização. Nas cidades em que a sinalização foi abolida, o substrato cultural sobre o qual se estabelece a ordem espontânea é forçosamente muito mais assemelhado à ordem coercitiva determinada pela legislação de trânsito que o que encontramos na nossa sociedade.

Um paralelo poderia ser traçado, talvez, entre o trânsito brasileiro e o de outras sociedades em que tampouco é introjetado ao ponto da Europa do norte o respeito à ordem exógena. Foi publicado há algum tempo um interessante depoimento de um americano radicado na Coréia sobre sua experiência no trânsito no Vietnã. Segundo ele, simplesmente não há sinalização nas ruas e o tráfego flui admiravelmente. Para um americano, que absorveu “as regras e sinais de trânsito junto com o leite da mamãe” (sic), foi uma experiência apavorante, mas de certo modo libertadora, perceber que é possível a existência de uma ordem autônoma. O autor, em seu entusiasmo, chega a citar um sábio chinês, Chuang Tzu (369 a.C.–286 a.C.), que teria dito que “uma boa ordem é o resultado espontâneo de quando se deixam as coisas quietas”.

Creio poder dizer que já vi coisa parecida no Brasil; uma amiga americana queria chegar no Brasil e alugar um carro ainda no aeroporto, para viajar para outra cidade. Convenci-a a não o fazer sem ter visto o trânsito em primeira mão. No seu segundo dia, quando entramos – comigo no volante – em uma rua de mão dupla onde só cabia um carro de cada vez e encetamos o ritual de cortejo típico do trânsito brasileiro, em que cada um procura perceber as intenções do outro motorista para saber se é ou não possível seguir, ela confessou-se incapaz de dirigir no Brasil.

Temos assim, no trânsito como na legislação penal, uma codificação ou tipificação do comportamento que não corresponde às regras socialmente aceitas (mostra-me um brasileiro que nunca descumpriu uma leizinha que seja... e mostrar-te-ei um mentiroso!). A ordem espontânea do trânsito, quando interrompida por um acidente (ou um radar...), cede seu lugar à legislação de trânsito. Determinações de via preferencial que têm pouquíssimo valor na vida prática (quem seria louco de entrar sem olhar em um cruzamento à noite só por ter preferência segundo a legislação de trânsito?), placas que são ignoradas ou ganham um na prática segundo sentido, “mais verdadeiro” (60 km/h = “dá para impressionar as menininhas cantando pneu”; 80 km/h = “pisa fundo!”; PARE = “é melhor diminuir a velocidade e olhar de relance para os lados antes de pisar fundo”...), tudo isso subitamente ganha outro sentido e outra dimensão quando o aparato coercitivo do Estado entra em ação, seja por causa de um acidente ou da simples instalação de um radar. O motorista brasileiro sai de um mundo, de um conjunto de regras, de uma ordem endógena autônoma, e penetra em um universo que lhe é estranho, o da ordem exógena e coercitiva. É mais ou menos o mesmo choque cultural da pessoa normal que se vê como vítima em uma delegacia de polícia: o que ela chamava de roubo passa a ser furto, o assalto que sofreu ganha o nome de roubo, o que era para ela estupro passa a ser atentado violento ao pudor, etc. As regras são outras; elas podem condenar as mesmas coisas e ter os mesmos objetivos, mas são outras.

Para que cheguemos a uma perfeita reprodução do modelo de Monderman, no Brasil, falta apenas a retirada física da sinalização e a construção de mais rotatórias. Creio que na verdade pouco mudaria; a ordem que temos de facto já é do tipo espontâneo.

Perito Ortegão

Um comentário:

  1. E, então, percebo que Macapá/AP é uma cidade de vanguarda no Brasil porque, assim como na escandinávia, não possui sinalização de trânsito e o que domina o trânsito muitas vezes é o hábito. hahahha Brincadeiras a parte, já vi acidentes (e são muitos aqui) em locais onde a falta de sinalização torna praticamente impossível colocar culpa em algum condutor. A culpa, na verdade, parece ser dos eleitores, mas isso aí já é outro problema... hehe

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