terça-feira, 17 de agosto de 2010

Trânsito ou Tráfego? Acidente ou Ocorrência?

Neste blog, sob o tag de "jargão pericial", já discutimos o que se entende por vestígio, diferenciando-o de indícios e evidências, já exploramos a acentuação de projétil/projetil e divulgamos um link sobre vocabulário documentoscópico. É interessante notar que, diante da falta de padronização do vocabulário criminalístico nacional, esse é virtualmente um tema sem fim.

Recentemente, o colega José Luiz Pappa Falleiro, Perito Criminal do Estado de Tocantins, levantou uma discussão muito interessante sobre que termo utilizar: Tráfego ou Trânsito? A discussão ocorreu no ambiente do Fórum Nacional de Perícia Criminal, um grupo de e-mails que reúne peritos de todo o Brasil.

Anaximandro Coimbra, Perito Criminal do Estado de Roraima, destacou que "Trânsito é o deslocamento de pessoas, veículos ou animais pelas vias de circulação. Tráfego é o deslocamento de pessoas, veículos ou animais pelas vias de circulação, em missão de transporte. Assim, um caminhão vazio, deslocando-se pela rodovia, está em trânsito; quando carregado com mercadorias ou produtos, está em tráfego. Daí a distinção de normas de trânsito e normas de tráfego."

O colega goiano Antônio Carlos Chaves foi além, questionando o termo "acidente de trânsito", uma vez que "as conclusões dos laudos periciais em sua grande maioria apontam para uma causa técnica produzida por um dos condutores (ou causa concorrente). Então a designação acidente deixa de corresponder às nossas conclusões que sempre apontam uma causa (humana, veicular ou viária), intencional ou não (em sua maioria, não intencional), porém nunca expõe uma causa acidental." Os Peritos Criminais de Goiás estudam a substituição do termo "acidente" por "ocorrência", esquivando-se das questões causais que levaram ao evento. Conforme lembrado pelo Perito Criminal José Cavalcante, do Estado de Alagoas, no último seminário de trânsito, ocorrido em Macapá/AP, já se falava em substituir o termo "acidente" por "ocorrência".

O propositor da discussão (Falleiro) apontou um trecho do artigo Glossário dos Termos Empregados na Sinalização Semafórica de autoria do especialista em controle e monitoração de trânsito Luis Vilanova. Referido artigo remete à dissertação de mestrado apresentada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo por João Cucci Neto cujo título é Aplicações da Engenharia de Tráfego na Segurança dos Pedestres. No subtítulo 2.2 DEFINIÇÕES da dissertação, Cucci Neto nos ensina que:

a) Trânsito

Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, do Aurélio, trânsito é: “Ato ou efeito de caminhar; marcha. Ato ou efeito de passar; passagem: É proibido o trânsito de veículos; são passageiros em trânsito. Movimento, circulação, afluência de pessoas ou de veículos; tráfego: o trânsito dos visitantes duma exposição; o trânsito de uma estrada. Restritivamente: Trânsito nas cidades, considerado no conjunto; circulação, tráfego, tráfico”. O Regulamento do Código Nacional de Trânsito - RCNT define trânsito da seguinte maneira: “utilização das vias públicas por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para os fins de circulação, parada e estacionamento”. Meirelles, apud Lopes, define “... trânsito é o deslocamento de pessoas ou coisas (animais ou veículos) pelas vias de circulação... (Direito Municipal Brasileiro, pg. 152)”.

Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, trânsito é: “a ação de passagem de pedestres, animais, e veículos de qualquer natureza por vias terrestres, aquáticas e aéreas, abertas à circulação pública. Usada especialmente para definir circulação rodoviária, urbana ou rural”. A definição de trânsito considerada para este trabalho, foi a dada por Rozestraten: “um conjunto de deslocamentos de pessoas e veículos nas vias públicas, dentro de um sistema convencional de normas, que tem por fim assegurar a integridade de seus participantes. Analisemos esta definição:

- um conjunto de deslocamentos. Um homem ou um carro em um deserto não constituem trânsito, nem é necessário ter um objetivo;

- nas vias públicas. O que acontece em terreno particular não é trânsito oficial e não precisa obedecer ao Código;

- um sistema. Ou seja, um conjunto de elementos que cooperam na realização de uma função comum. Assim, um relógio é um sistema de peças que, conjuntamente,
indicam as horas. No trânsito, a função comum é o deslocamento: chegar ao destino são e salvo. Para isto, cada elemento tem que obedecer às normas do
sistema;

- um sistema convencional. Em oposição a um sistema natural (sistema solar, célula, homem) e porque os homens criaram livremente essas normas, que
poderiam ser diferentes. São assim porque se trata de um convênio na sociedade e até entre os países; www.sinaldetransito.com.br

- a finalidade é assegurar a integridade de seus participantes. Cada um deve alcançar sua meta sem sofrer dano.

Ainda segundo Rozestraten, “o trânsito é um comportamento social. No trânsito todos os participantes devem atuar de forma a permitir que cada participante chegue com segurança ao seu destino. É a atuação de um grupo não estruturado como, por exemplo, um coletivo, um caminhão, motocicletas, bicicletas e pedestres, todos querendo passar pelo mesmo cruzamento. Este grupo deve resolver o problema da melhor maneira possível, sem que ninguém seja lesado no seu direito de se locomover conforme as normas aceitas. Este grupo nunca mais vai se encontrar exatamente na mesma situação. É um grupo efêmero, de apenas
alguns segundos. No entanto, ele deve resolver o problema a contento de todos, sem prejudicar ninguém. O comportamento desajustado de um só indivíduo pode trazer prejuízos grandes para todo o grupo”.

b) Tráfego

Bueno, no seu Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa cita a origem do termo trafegar como: “o significado primordial é o de comerciar, negociar, mercanciar, mercadejar, comprar e vender, enviar mercadorias de um lugar para o outro. Daqui se derivou o segundo de transportar, de locomover-se, aplicando-se aos transportes ferroviários, marítimos etc. Segundo a opinião de muitos etimologistas, trafegar, trasfegar, traficar procedem da língua dos vinhateiros, dos fabricantes e vendedores de vinhos trans + faecare, esta de faex, faecis, fezes, bôrra, o depósito que fica no fundo das garrafas, das pipas de vinho. Significava, portanto, agitar as ditas vasilhas, levá-las de um lugar para o outro, agitando para que as fezes se diluíssem”.

Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, do Aurélio, tráfego é: “transporte de mercadorias em linhas férreas ou em rodovias”. O Cambridge International Dictionary of English define tráfego (“traffic”) como: “o conjunto de veículos movendo-se por vias ou o conjunto de aeronaves, trens ou navios movendo-se através de rotas. Pessoas ou bens transportados por estradas, ar, trem ou navio com fins comerciais”.

Segundo a ABNT, tráfego é: “o estudo da passagem de pedestres, animais e veículos, de qualquer natureza, por vias terrestres, aquáticas e aéreas, abertas ao trânsito público”. Comparando-se as várias definições aqui transcritas sobre trânsito e tráfego, não é possível se diferenciar claramente os dois termos, podendo ser considerados sinônimos.

Este trabalho propõe a seguinte distinção, em nível técnico: que trânsito seja utilizado quando se tratar do deslocamento de pessoas ou veículos (em termos gerais - a definição detalhada de Rozestraten, que foi transcrita anteriormente) e o termo tráfego aplicado quando se fizer relação com o estudo desses deslocamentos.

Em seu artigo, Vilanova complementa os dizeres de Cucci:

Em primeiro lugar, transcrevemos o dicionário Houaiss, nas acepções que nos pareceram mais pertinentes ao que estamos discutindo. Segundo ele:
"Trânsito - movimento de veículos em determinada área, cidade etc.; tráfego"
"Tráfego - fluxo das mercadorias transportadas por via aérea, férrea, aquática ou estrada de rodagem; no trânsito, movimento ou fluxo de veículos."

Em segundo lugar vamos ler o Código de Trânsito Brasileiro:
“Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.”

Entretanto, o Código não define tráfego, apesar de utilizá-lo, inclusive, quando se refere à “Engenharia de Tráfego”. De todo o arrazoado anterior, fica claro que não há diferença substancial entre trânsito e tráfego. Somente pudemos notar que este último traz consigo também a idéia de transporte de mercadorias. Mas é apenas uma acepção adicional e ninguém pode afirmar que a frase “o tráfego está intenso” está errada, por exemplo.

Concluímos, propondo que se utilize apenas o termo trânsito, por ser mais popular, e que tentemos, aos poucos, abandonar tráfego, que apenas é uma segunda palavra para a mesma coisa, o que não é muito conveniente quando se trata do nome da nossa própria área de atuação. Acreditamos que sua utilização se deve, principalmente, a um abrasileiramento do inglês traffic. Talvez, por isso, encontremos o termo, principalmente, em expressões mais técnicas, do tipo “Engenharia de Tráfego” e “Simulação de Tráfego”. Essa foi, provavelmente, a causa do João Cucci ter proposto que se reservasse o termo para os casos relacionados com estudos, pois seu uso já se encontra bastante arraigado nessa área. Mas nós estamos sendo um pouco mais radicais e defendemos que se utilize só trânsito, tanto para seu sentido lato como para a abordagem mais científica. Encerradas todas as ponderações, chegou a hora de definir trânsito. Seguimos a opinião do Cucci e adotamos a definição de Rozestraten: Trânsito é um conjunto de deslocamentos de pessoas e veículos nas vias públicas, dentro de um sistema convencional de normas que têm por fim assegurar a integridade de seus participantes.

O já citado colega Coimbra ressalta que o termo "tráfego" é mais adequado à Pericia Criminal, pois "Quando nos referimos ao trânsito de pessoas ou de veículos, não estamos preocupados de onde vêm, para onde vão ou como estão se deslocando. A expressão trânsito nos remete a uma idéia apenas da movimentação de veículos, de forma geral e aleatória. No entanto, quando nos referimos ao tráfego de veículos, temos imediatamente a noção de que há regras ou normas de circulação e conduta entre os elementos que interagem."

Há, entretanto, quem se posicione em contrário, como o Presidente da Associação dos Peritos Criminais de Goiás, o Perito Criminal Carlos Kléber da Silva Garcia, argumentando que o termo correto é trânsito. "Trânsito é o termo já consagrado no Brasil para designar a circulação de caminhões, veículos, motos, bicicletas e pedestres nas vias públicas. Assim temos, Código de Trânsito Brasileiro, Departamento Nacional de Trânsito, Conselho Estadual de Trânsito, Semana Nacional de Trânsito e assim por diante. Já o termo tráfego, pode até se referir também ao tráfego de veículos, caminhões, motos, bicicletas e pedestres, mas é muito mais amplo. Nós podemos ter tráfego de voz e dados, tráfego de aviões, tráfego de mercadorias etc. Desta forma, entendo que não há qualquer dúvida de que o termo correto é trânsito e não há qualquer razão para reinventarmos a roda."

Quanto a "acidente" ou "ocorrência", Garcia expõe que "Quando utilizamos o termo acidente, já estamos implicitamente adiantando o resultado do laudo, afirmando que seria um acidente. Outra sugestão seria utilizar o termo crimes de trânsito, mas estaríamos incorrendo no mesmo erro. Por esta ótica, o termo ocorrência seria o mais certo. Mas, entre uma sugestão e outra, eu fico com a proposta dos peritos do DF. Diante de todo o exposto e das discussões e argumentos apresentados, hoje eu creio que o melhor nome para o laudo de trânsito seria: Laudo de Perícia Criminal (Ocorrência de Trânsito)".

Longe de um fim, a discussão prossegue. Exponha sua opinião nos comentários.

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